quarta-feira, março 08, 2006

Cru


«Chamou “Cru” ao seu mais recente disco por causa da forma, dos arranjos, ou foi mais pelo conceito geral?

Pelo conceito geral, que era fazer uma música brasileira que o francês gostasse. Os franceses são um dos poucos povos do mundo que aprecia muito a cultura brasileira, sobretudo a música. Só que a música que chega à Europa é cheia de símbolos: a camisa do Ronaldinho, a bandeira do Brasil, a mulata, o pandeiro... Eu quis um registo que não fosse técnico, de estúdio, mas sim de emoção, gravar a minha maneira de cantar na hora, a minha pessoa. No estúdio, a música pode ser perfeita mas fica mais fria do que quente. Há a tendência de “congelar” a interpretação. Uma vez gravado, fica para sempre. É claro que todo o artista é de certa forma, técnico, mas quando se escolhe um registo de emoção a técnica não ajuda muito. “Cru” é mais emoção e menos técnica.»

Y, 1 de Julho 2005

Aquele sobre quem recai a estulta responsabilidade de ser o próximo mito do panorama musical brasileiro, faz de conta que não nota a excitação europeia e grava a confirmação da sua bipolaridade artística: é um actor-músico.

Converteu-se num fenómeno moderno a existência avulsa deste tipo de artistas, ainda que muitos tenham reconsiderado em face das violentas críticas às suas supostas novas valias. Aqui a memória desempenha função-chave: quando se desenvolve admiração pelo trabalho de um artista numa área, ao longo dos anos, torna-se difícil (para um fã não amblíope) não esmiuçar friamente a nova performance. Talvez sobreavisado, talvez sortudo, Seu Jorge é verdadeiramente um actor-cantor-músico. Importa explicar porquê:

Educado sob os rigores da insustentabilidade social brasileira e pela boa vontade dos seus pais, Seu Jorge atravessou atribulado crescimento. Ao longo da sua adolescência desempenhou vários ofícios e, após tragédia aparentemente comum por lá (morte de um irmão e consequente desmembramento familiar), vagabundeou, viveu sem tecto e roçou o vínculo definitivo e fatal a vícios destrutivos. É então que se opera o milagre – resgatado por Paulo Moura, clarinetista brasileiro – que nos permite ouvir música dele. A partir de 1996, o seu nome vai crescendo dentro do meio musical canarinho, sustentadamente, impulsionado por algumas colaborações. Quando dá por si, edita Samba Esporte Fino, em 2001, viagem à sujidão visceral do samba e do funk negros, embora já com certo grau de sofisticação aprazível ao gosto ocidental. No entanto, ainda antes de conquistar o Velho Continente (sempre sedento de novidades), revelou-se como Mané Galinha no filme “A Cidade de Deus” (2002), de Fernando Meirelles. Em 2004, dá admirável concerto na MTV, posteriormente colocado nos escaparates discográficos; participa na película “Um Peixe Fora de Água”, de Wes Anderson, para quem faz eclécticos covers de músicas de Bowie; e, como se não bastasse, faz a tal produção para «francês ouvir»: Cru.

Ora o que impressiona mais, em contraposição ao álbum Samba Esporte Fino, é a simplicidade roufenha que dirige a gravação. Há toda uma exibição propositada de ligeiríssimas rugosidades que, como decerto pretendia, acrescenta uma humanidade palpável, não verdadeiramente real, mas teatral. Isto porque, e não tem pejo em afirmar, ele não é músico. Digo segunda vez: é actor-músico. Aliás, e como o próprio afiança, nota-se a nova abordagem minimalista, no sentido que minimiza o excesso de produção do disco de 2001.

Quanto ao samba, rock e funk, reduzem-se. A bossa nova, as baladas e o forró ganham espaço. Nas 10 faixas de Cru tudo se enquadra mais harmoniosamente, havendo espaço para diversas susceptibilidades psicológicas. Sendo uma colecção de músicas maioritariamente não originais, impressiona a fluidez com que o álbum se dá a conhecer: há Elvis Presley (“Don’t”) a assistir à cuíca a fazer as vezes da guitarra eléctrica, há Serge Gainsbourg (“Chatterton”) em manifesto suicidário da neurastenia filosófica, há Robertinho Brant (“Fiore de La Citta” e “Una Mujer”) a permitir novas versões de bossa requintada, há Carlos Dafé (“Bem Querer”) em viagem ao Brasil dos 70’s, Ataulfo Alves (“Mania de Peitão”) a revirar-se com a recuperação do êxito de 1941 “Ai Que Saudades de Amélia” e Duani (“Bola de Meia”) numa canção quase falada por Seu Jorge, capaz de tocar qualquer casal na vertigem da separação. E, para o que resta, há sempre Seu Jorge, a abrir com desabafo descomplexado (“Tive Razão”), a prosseguir com lamento passional (“São Gonça”) e a fechar com retrato sincero e assumido da sua anterior condição de vida (“Eu Sou Favela”).

Com mais ou menos emoção, mais ou menos técnica, Cru impressiona enquanto caldeirão musical. Era esse o passo que lhe faltava dar cá no burgo: mostrar que sabe dançar, cantarolar, rir, enlouquecer, protestar e, se for necessário, se suicidar.
Nota: 8/10