quarta-feira, novembro 15, 2006

Vivo #1 – Daft Punk no Festival do Sudoeste (III)


A primeira sequência de sons é retirada de Encontros Imediatos do Terceiro Grau, de Spielberg, e recontextualizada para introduzir os espectadores num mundo onírico de comunicação musical e visual com uma forma de vida (a deles) diferente da humana. O aperitivo depressa se esgota e a primeira concatenação de elementos vocoderizados surge: um “Human Robot” eléctrico a galopar até atingir velocidade suficiente para a introdução de uma batida vigorosa. É a afirmação prévia da sua natureza artística (numa rara entrevista no Japão afirmam-se, de certo modo, como seres cibernéticos com um coração que bombeia sangue) mas também uma declaração de intenções relativa à encenação e à música. O Human After All, para alguns uma verdadeira sátira aos mecanismos de criação musical, ocupa os primeiros minutos, visto que suporta melhor que nunca o conflito entre a emoção, a tecnologia e a criação musical. Há um constante degladiar entre “Technologic” e a teia de acções que dita, a pretensão de reinterpretar o rock em “Robot Rock” e a emancipação última pretendida pelas máquinas em “Human After All”. E que melhor maneira de condimentar tudo isto do que com “Oh Yeah”, a acrescentar alguma sujidade e prazer?

Seguiu-se a inclusão do rectângulo mágico nesta profecia tecnológica com a aparência de hino de estádio (“Television Rules The Nation”) e a intercalação com a inesperada “Crescendolls” (curiosamente, esta música coincide com a ascensão da banda alienígena ao prime time televisivo em Interstella 5555), mas o melhor estava para vir: uma reinterpretação de “Too Long” imediatamente seguida de uma notável progressão a instituir, finalmente, o carácter épico e cósmico no espectáculo. Os sintetizadores a trabalhar em consonância e em aceleração (trazendo à memória Equinoxe de Jean-Michel Jarre), acompanhados por uma imagem suavemente heterogénea a inundar o LCD da rectaguarda lançaram as bases para esse momento contemplativo e inimigo da dança desenfreada. Eventualmente surgiria um baixo robusto para sossego das almas mais impacientes com a ausência de movimento, bem como o aquecer dos motores (“Steam Machine”) para a primeira revisitação nostálgica da noite – “Around The World”. Os Daft Punk sabem que este êxito não carece de companhia e suporte, pelo que naturalmente se limitaram a deixá-la fluir solitariamente, por um par de minutos, para deleite de todos os amantes de linhas de baixo. A provocação viria no embate de “Around The World” com “Harder Better Faster Stronger”, dois tratados de música electrónica. Conjugar dois elementos tão clarividentes como a soberba linha de baixo da primeira e o quase lema olímpico vocoderizado da segunda é tarefa que chegue.

Mais tarde, já decorrida a expansão tecnológica no mundo inteiro (“Technologic e “Around The World”) chega a vez de Romanthony nesse quase kitch refrão de “Too Long”, repetido em loop até o ritmo se aproximar do zero. Então logo se fez silêncio e o cenário escureceu. À primeira pausa o público manifestou-se efusivamente. E os gauleses decidiram-se pela experimentação: “Face to Face” e “Harder Better Faster Stronger” em sobreposição e em aumento de velocidade, com a segunda transformada em linha melódica a sustentar os vocais da primeira. Passou-se da desorientação geral (as pessoas têm um problema com sons vagamente descompassados) à dança num curto espaço de tempo, numa brilhante manipulação dos originais. A estabilização pop viria com “One More Time” e “Aerodynamic”, criando-se uma nuvem de pó sobre a multidão tumultuosa, especialmente aquela que subitamente desperta com o reconhecimento de um single.

O último terço do espectáculo centrar-se-ia em Homework e Human After All, provando que no fim de contas há uma certa afinidade entre ambos, em contraste com a ornamentação barroca de Discovery. Inseriram a remistura que fizeram para a Gabrielle (“Forget About the World”) e, daqui para a frente, não haveria como proteger os ouvidos dos decibéis. “Rollin’ and Scratchin’”, “The Brainwasher”, “Alive” e essa glorificação tecnológica à infância chamada “The Prime Time Of Your Life” electrizaram os mais cansados, obrigando-os a um último fôlego – “Steam Machine” e “Da Funk”. Esta última é de uma simplicidade que arrelia, visto que é imediatamente reconhecível recorrendo a uma sequência de bateria inicial escandalosamente simples. “Da Funk” seria, no entanto, a derradeira passagem meramente musical, porque para o final estava reservada a verdadeira sinopse de todo o espectáculo: a mitificação da dupla a cargo de “Superheroes”, a confirmação da predominância da raiz humana através de “Human After All” ao som da epopeia maximal “Rock’n Roll” e o desfile de rostos e lugares nos ecrãs frontais da pirâmide, na celebração da diversidade humana.

Em grande parte do concerto é difícil afirmar que haja uma clara demonstração de virtuosismo técnico. Em comparação com o álbum Alive 1997, o actual espectáculo peca ao não exibir semelhante passeio de habilidades e intuição musical (instantânea, pois claro). Parece haver uma menor preocupação em relação às passagens e à suavidade das mesmas mas, considerando que eles não regrediram na matéria, tal dever-se-á à mudança de objectivos. Ao longo do set foram-nos oferecidas passagens equilibradas e também cortes bruscos. O virtuosismo técnico é portanto apenas mediano, sacrificado em prol de um trabalho extraordinariamente mais ambicioso do que o Alive 1997. O alcance é o cerne da obra e a razão da sua aparente simplicidade.

A meta a atingir é das mais multifacetadas que se pode imaginar. Satirizar a criação musical, parabolizar a vida de dois robôs humanos e integrar as pessoas nesse fábula, rivalizar com outros monstros da ficção científica, incluir pequenas subtilezas e referências e tentar agradar todos os tipos de público são tarefas normalmente impossíveis de conjugar. A maioria dos músicos limita-se a tentar seduzir o público, fazendo-o cantar, dançar ou aplaudir, e não raras vezes nisso falham. O espectáculo montado pelos Daft Punk constitui então manifesto estético praticamente sem paralelo nos dias de hoje e um desafio para toda a comunidade musical.

5 Comments:

Anonymous Anónimo said...

onírico? que tem a ver com sonhos? detesto pretensiosismos...

1:09 da manhã  
Blogger Pedro Teixeira said...

Esse pretensiosismo está nos Daft Punk ou na utilização da palavra "onírico" pela minha parte?

8:56 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

utilização. só por ser uma palavra que fica bem. embora nada tenha a ver. os dafto punk nao criam, nao vivem nem nos transportam para sonhos, mas sim para mundos, galáxias, planeta, fora daqui. mas sempre consciente. nao concordas?

3:22 da tarde  
Blogger Pedro Teixeira said...

Este comentário foi removido por um gestor do blogue.

2:00 da manhã  
Blogger Pedro Teixeira said...

Devo confessar que não tenho grandes preocupações estéticas na feitura dos meus posts. Limito-me a recorrer às palavras que exprimem o mais precisamente possível as minhas ideias. Recorri então ao termo "onírico" para atribuir ao mundo construído pelos Daft Punk um tom fabuloso e irreal, próximo dos sonhos. Até porque a palavra "sonho" é também sinónimo de ilusão e utopia, e só uma leitura mais estrita nos leva a considerar que os sonhos são apenas os fenómenos de alucinação visual que acontecem durante o sono. A inclusão da palavra no texto foi de facto ponderada, pelo que rejeito o meu suposto pretensiosismo.

Parece-me, aliás, que há um desencontro entre a primeira crítica que me fazes e a segunda. Discordar do que eu afirmo não é exactamente o mesmo que supôr que recorri à palavra para efeitos de ostentação vocabular. Acho enriquecedor que se discuta com seriedade e que me digas que os daft punk não nos transportam para sonhos, mas assumires imediatamente que não tenho explicação para a utilização da palavra parece-me precipitado e de uma certa desconfiança.

Quanto ao que perguntas, sou da opinião que os Daft Punk fazem mais do que nos transportar para mundos e galáxias distantes, até porque existem outros músicos que fazem o mesmo mas conferem a esses mundos um carácter mais incerto e inóspito e portanto mais realista. Há toda uma alucinação eufórica (espcialmente em Discovery) que torna esses mundos mais próximos da fantasia e do sonho (enquanto ilusão) do que da previsível inospitalidade. No entanto, essa mensagem está escrita de maneira a nos permitir viajar conscientemente e totalmente despertos, pelo que nesse aspecto concordo contigo.

2:02 da manhã  

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