sexta-feira, fevereiro 09, 2007

Maurice

People were all around them, but with eyes that had gone intensely blue he whispered, “I love you”


Ainda que publicado postumamente, Maurice tornou-se uma obra fundamental de E. M. Forster (em conjunto com A Room With a View e A Passage to India) e, apesar de ter sido escrito sessenta anos antes da morte do seu autor, só conseguiu efectivamente conquistar a literatura passados alguns anos dessa data. O escritor britânico impediu sempre a publicação da obra, uma vez que o Reino Unido condenava quer legal quer moralmente a homossexualidade. Ainda assim, depois de publicado, Maurice tornou-se não só um livro revolucionário, onde uma história de descoberta sexual e erótica toma lugar, mas também um livro em que os bons costumes da sociedade britânica são abalados por mudanças nos modos de pensar.

O talento de E. M. Forster consagrou-o um dos melhores escritores do século XX, facto não abalado pela sua homossexualidade (também ela “assumida” postumamente). Na verdade, Forster deixou em Maurice a derradeira prova da beleza da sua escrita, da profundidade de um amor considerado perfeitamente imoral e ilegal na época em que vivia, da fantástica descrição de um percurso intenso de auto-descoberta. Muito para além de factos históricos e de suposições revolucionárias, o mérito literário subsiste e aventura-se muito mais além do que um mero desafio à Lei Britânica: Maurice marca uma nova dimensão na Literatura Moderna e na obra de E. M. Forster.

Maurice Hall vive confortavelmente uma vida típica da classe média, com alguma estagnação intelectual. Antes da sua entrada no liceu, Maurice ouve as palavras de um professor. Este momento, no meio de uma caminhada, marca o início do livro e marca também a vida de Maurice: o professor explica-lhe a visão moral do amor livre, apenas concretizável na diferença entre os géneros. Esta dimensão quase inibitória vai ser a sombra do jovem ao longo do seu crescimento, à medida que compreende que não quer para si um estilo de vida pré-definido, mas sim qualquer coisa de maior e de melhor, qualquer coisa de diferente que ainda não compreende por completo. À medida que progride nos seus estudos académicos, Maurice vai se conformando ao estabelecido, sem nunca compreender o fenómeno que, embora não afaste da sua consciência, não mantenha propriamente junto dos seus pensamentos: a sua atracção homossexual.

Então, Maurice começa a frequentar a Universidade de Cambridge, onde conhece Clive Durham, um intelectual abastado que leva Maurice a pensar em tudo o que, até aí, lhe havia assaltado a mente. Clive e Maurice iniciam, assim, um percurso onde existe um despertar sexual. A relação mantém-se à margem da sociedade, à margem dos amigos, atirada para tardes passadas no quarto um do outro ou no campo. Aqui, Forster mostra-nos uma visão muito bonita deste amor: sem desligá-lo da componente física, descreve de um modo terno e doce como o amor entre dois homens tem contornos semelhantes ao amor heterossexual. Através de Clive, e estudando os Gregos, Maurice compreende finalmente o que se passa consigo, ainda que de um modo algo enevoado.

Maurice é então confrontado com a visão de Clive. O seu amante pretende casar e seguir a sua vida de acordo com a normalidade imposta socialmente. Chocado, Maurice rejeita por completo uma vida ao lado de uma mulher, sem qualquer tipo de prazer sexual. Depois destas desavenças, os dois amantes são forçados a ser separados. Maurice Hall regressa a casa, onde é confrontado com a realidade social, tão ambicionada pelo seu amigo Clive: o casamento, a família, o amor abençoado entre um homem e uma mulher. Assustado, Maurice recorre à opinião de um psiquiatra, alegando que é um dos do género de Oscar WildeForster recorre a uma ironia muito subtil nesta cena, mesmo quando o psiquiatra explica a Maurice que não existe nada a fazer, que a ciência não tem resposta, que não compreende, que a sociedade também não compreende e condena. Sobretudo isso… a sociedade condena.

Procurando um escape, Maurice tenta encontrar o seu companheiro dos tempos de faculdade… descobre que está casado e que, aparentemente, a sua vida voltara ao normal. Aceita, pois, um convite para passar por casa de Clive durante alguns dias. Atormentado pela culpa, abandonado pela sociedade, Maurice trava conhecimento com Alec, um jovem que trabalha na propriedade de Clive. Deste encontro nasce um novo relacionamento, mais feroz e mais apaixonado do que a relação de Maurice e Clive, muito mais idílica. Esta relação nasce sobretudo da diferença entre as classes dos dois: Maurice é um cavalheiro, que estudou em Cambridge e tem um emprego estável, Alec Scudder é um simples moço de recados, um criado, um ser menor.

As noites nos braços um do outro tornam-se cada vez mais frequentes. Forster delineia este amor de uma forma gradualmente mais intensa. Maurice confronta Clive com a relação que tiveram, comparando-a à que tem agora com Alec. Estupefacto, Clive não se mostra estupidamente compreensivo, como seria de esperar, facto que atira Maurice de novo para os braços de Alec. Esta relação mantém-se até ao dia em que Alec decide viajar, sem retorno, para a Argentina, abrindo um caminho para um final especialmente tocante, especialmente bonito.

E. M. Forster consegue seguir Maurice num livro considerado por muitos como autobiográfico. Apesar de a homossexualidade ter sido despenalizada legalmente, continua a ser penalizada moralmente, até nos dias de hoje, pelo que realço a forma como a aproximação de Forster a alguns temas está dotada de uma perspectiva diferente: o seu modo de olhar com carinho onde outros tantos olharam com ódio marcou a Literatura, abrindo portas para um tipo de Literatura honesta e sem pudores. Por mais que apaixone, por mais que desafie, por mais que explicite na perfeição um sentimento, atinge-se em Maurice um novo patamar na Literatura, mesmo recorrendo a símbolos para ilustrar acções, mesmo utilizando muito movimento para delimitar o sossego. As palavras não poderiam ser outras, o contexto não poderia ser outro, Maurice Hall não poderia ter feito nada de maneira diferente.

Um autor perfeito, uma história perfeita, um livro perfeito. Sem moralismos ou juízos de valor.


Título: Maurice

Autor: E. M. Forster